Por Aydano André Motta - 20.7.2009
Na ficção do cabo, o doutor Gregory House espezinha subordinados, despreza pacientes, tortura amigos e inferniza chefes - gênio! Na vida real dos famosos, Romário cativa o mundo além dos campos onde reinou como artilheiro, com frases ferinas, punhais falados, recebidos com euforia de golaço pelo distinto público - rei! Luana Piovani esculacha com quem lhe cruza o caminho, desdenha dos bajuladores, olha o mundo lá de cima do púlpito da loura conceitual - linda! Em comum entre eles, muito acima de bem e mal, um traço dos nossos tempos: o fascínio pela maldade. Não se enganem: os humanos adoramos os malvados.
E, claro, não temos a menor paciência para os bonzinhos. Como são aborrecidos, aguados, um tédio, os do bem. Personagens pobres, vivem na monotonia de suas convicções, seguem na certeza inabalável de seus valores, gente mais desenxabida! Retos, coerentes, serenos, gentis, engajados, quem os aguenta? Muito melhor saborear a ironia rascante, divertir-se com o ataque contundente, deixar-se seduzir pela hostilidade charmosa. Só o alvo reclama, mas com ele, em geral, ninguém se importa.
O encanto do doutor House tem como alicerce a perversidade cotidiana, que tempera a genialidade surpreendente dos diagnósticos. As mulheres se apaixonam, os homens invejam aquele mau humor, aquela sem-cerimônia no trato com os outros humanos. Irresistível. O médico que não liga a mínima para a tragédia do paciente, por interessado apenas em descobrir a doença, enfeitiça todos à sua volta - aí incluídos os milhões de fãs mundo afora, no seriado mais assistido da Terra.
As cores fortes típicas da ficção são totalmente baseadas em fatos reais, como prova a trajetória de Romário. Quem não aplaudiu pérolas como "Pelé calado é um poeta", "Todo mundo está feliz - o rei, o príncipe e o bobo" e, mais do que qualquer outra, "Entrou no ônibus agora, já quer viajar na janela"? A marra de quem olha o mundo do alto (apesar dos 1,69m) e tem alergia à diplomacia poderia ferir suscetibilidades aqui e ali. Que nada. Rigorosamente todo mundo acha o estilo do ex-artilheiro simplesmente o máximo.
Agora, no bafafá em torno do calote na pensão da ex-patroa (ou dos filhos, reza o sofisma esfarrapado), ainda deu para a turba festejar a sedução aos companheiros de cela, na noite atravessada na cadeia emergente. Romário é esperto, Romário é bom mesmo, Romário é pegador, prega a voz das ruas. Quis o destino que o evento carcerário fosse na semana dos 20 anos da Copa de América de 1989, o primeiro título da seleção desde 1970, motivo para se voltar a outro craque, Bebeto, a metade coadjuvante do ataque que, na História, tem o Baixinho escalado como protagonista.
O baiano, coitado, não tem perdão: a simples menção a seu nome provoca aquela contração no rosto, tradução facial do "chatinho ele, né?" Vacilante nas declarações (como jamais foi em campo), afável, hospitaleiro e disponível, Bebeto tem mesmo o sabor de um sanduíche de ricota. E só por isso, ninguém o atura. Jogo jogado.
Pois a trapaça da sorte vem agora: o "esperto", o "bom mesmo", o "pegador" vive sua história de bandido, vendo o sol da Barra nascer quadrado, e, endividado, ainda está metido numa pirâmide própria dos otários, que levou alguns de seus milhões. O "sem graça" cruza a meia idade em paz, casado com a (bela) mulher de sempre, os filhos quase criados, a vida nos eixos.
Não adianta. A admiração humana ignora a lógica. Mesmo na tragédia do império da violência que aprisiona as comunidades populares, patricinhas pobres, ricas e remediadas desmancham-se em paixão pelos déspotas do tráfico, tiranos de ocasião que reinam à razão dos fuzis. Os casos enfileiram-se na crônica policial.
Como no cinema. Responda sinceramente: Darth Vader ou Luke Skywalker? Hannibal Lecter ou Clarice Starling (diga a verdade, você aí sequer lembrava o nome dela)? Norman Bates ou, ahn, como se chamava a moça do chuveiro...? Não falha. Os malvados estão cristalizados no nosso coração, como se repetissem todo o tempo: "Eu não presto mas você me ama".
E nossa alma é toda ouvidos.
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